A FUNÇÃO ÉTICA DAS NARRATIVAS ORAIS

Kátia Regina Lima Guedes, POSLET, mestranda em letras pela UNIFESSPA, katiaguedes20@gmail.com
Gilson Penalva, POSLET, doutor em letras pela Universidade Federal da Paraíba, gilpena@unifesspa.edu.br

RESUMO: Narrar histórias é um ofício praticado desde a Antiguidade, pois não existe povo sem narrativas orais. As sociedades iletradas realizavam esse ato não apenas com o objetivo de fruição e de diversão; as narrativas orais também desempenhavam outras funções. Na região amazônica, as narrativas orais sempre fizeram parte da cultura dos povos que habitam esse lugar. Elas são passadas de geração a geração ensinando e despertando a imaginação de quem as ouve levando-os a viajar em um universo fantástico, cheio de emoção e temor. O objetivo do presente trabalho é analisar quais são as funções que as narrativas orais exerceram e continuam exercendo na sociedade. Nosso objetivo é compreender os valores sociais, éticos e morais que são desempenhados pelas narrativas e pelos narradores. Dentre os autores abordados neste estudo, nos embasamos em: PIZZARO (2012), BOSI, (1994), HAVELOCK (1996) e ROMANO (2009). 
PALAVRAS-CHAVE: narrativas orais; oralidade; valores socioculturais.

INTRODUÇÃO
Narrar histórias transcendeu-se no tempo e no espaço, desde os primórdios essa arte vem sendo exercida pela humanidade, desempenhando diferentes funções, talvez os narradores não percebam o poder que elas cumprem tanto na vida deles quanto na vida de quem os ouvem, mas no encontro entre narrador e ouvinte a magia surge e espalha-se na roda tocando o coração, a mente e a alma de todos que se fazem presente. Podemos aferir que contar é sinônimo de encantar, ensinar e humanizar. 

Esse encantamento milenar nascido no meio do povo ainda é praticado por muitas comunidades, as reuniões para contar os fatos vividos seja este uma história de encantaria ou como se sucedeu o trabalho do dia. O que sabemos é que no meio dessas rodas nascem às narrativas orais, surgem ou surgiu à literatura oral que assim como a literatura escrita exerce um grande poder na vida da humanidade. Na sociedade grega no tempo de Homero a literatura oral tinha como função, preservar a tradição:

A literatura grega tinha sido poética porque a poesia tinha desempenhado uma função social, a de preservar a tradição segundo a qual os Gregos viviam e a de instruir nela. Isto só podia significar uma tradição ensinada oralmente (HAVELOCK, 1996, p.18) 

Através desse ato poético narrativo, as pessoas aprendiam e/ou aprendem um com o outro o valor da vida, do ser humano, da sua cultura e preservam na memória essas heranças que são essenciais para a humanidade. 

A FORÇA HUMANIZADORA DAS NARRATIVAS ORAIS
Assim como na sociedade grega a literatura oral também tem desempenhado a função social de preservar a tradição em várias comunidades amazônicas. Os amazônidas quando se reúnem para ouvir os mais velhos da comunidade aprendem com eles como agir diante das situações cotidiana, aprendem a observar os sinais da natureza. Os aprendizados que recebem dos mais velhos nas rodas de conversas são passados para outras pessoas e é dessa forma que as tradições são preservadas, oralmente. 

Nas reuniões para contar histórias ocorre uma magia, o compartilhamento da linguagem acontece em forma de ensinamento das tradições, encantamento dos ouvintes e a humanização dos presentes porque as narrativas orais também exercem uma função ética. 

A oralidade usada em forma de narrativas, de literatura exerce um papel humanizante na sociedade, porque faz os homens compreenderem o sentido da vida, da sua cultura, faz com que as pessoas entendam os processos naturais, a terem respeito com a natureza e com os mais velhos, ela ajuda o ser humano a ser mais humano. 

Quando os contadores contam as histórias vivenciadas por eles ou por algum dos seus antepassados, nesse tecer narrativo, eles revelam o seu lado poético que encantam as pessoas que as ouvem deixando-os com o desejo de ouvi-las novamente, afinal quem nunca pediu para os seus pais ou avós repetirem uma história?

E é dessa forma que as narrativas vão percorrendo décadas e passadas de geração a geração, pois uma história bem contada permanece por longos anos na memória de quem ouviu. Segundo Romano (2009): 

Foi assim, via oral que as mais antigas sociedades aprenderam o mundo. Muitas vezes, em volta do fogo, os contadores revelaram a uma plateia atenta as raízes de seu povo, a origem das coisas, os costumes, os valores a serem passados às gerações futuras. Isso contribuiu, inclusive, para a explicação de por que o ser humano, por natureza, se sente um contador de casos (ROMANO, 2009, p. 143).

A narrativa oral tem esse poder, que podemos chamar também, de poder pedagógico, uma vez que ensina, educa; nesse ensinamento que é aprender o mundo, as tradições são preservadas nas memórias de quem se dedica ou tem a oportunidade de ouvir as vozes dos narradores, que ao se deleitarem com as histórias sentirão o desejo, também, de um dia repassarem os conhecimentos para outrem. 

As heranças que são transmitidas, não podem ser roubadas, pois estão armazenadas na memória, elas devem ser compartilhadas, como nos ensina Havelock (1996) ao afirmar que a linguagem tem de ser compartilhada; nesse ato de compartilhamento pratica-se a troca de conhecimento, é ensinado o valor da vida, da humanidade, o respeito aos mais velhos, o amor ao próximo e assim sendo, esse campo do saber contribui para a permanência da memória, da cultura, das tradições. De acordo com Ecléa Bosi: “O narrador é um mestre do ofício que conhece seu mister: ele tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira” (BOSI, 1994, p. 91). 

Esse mestre que foi formado pelo mundo e não pela academia guarda consigo uma memória rica, eles são os guardiões da memória das comunidades onde vivem, são cheios de experiência; acreditamos que é essa a “atmosfera sagrada que circunda o narrador”, o dom, o poder que ele tem de encantar e ensinar os seus ouvintes. O autor Antonio Candido (1972), afirma também que talvez os contos populares atuem tanto quando a escola e a família na formação de uma criança de um adolescente. Eis a força, o poder que a literatura exerce na humanidade. 

Assim como as outras artes, a literatura oral também reflete as relações do homem com o mundo e com os seus semelhantes. Todos nós seres humanos necessitamos de fantasias para “fugir” desse mundo cheio de problemas, de conturbações e a literatura vem suprir essa necessidade, pois humaniza, nos transforma e nos transporta para outro (os) mundo (os). A literatura oral não foi feita somente para a fruição, mas também, “neste mundo tão caótico, para alimentar nossos sentimentos e nos fazer mais felizes” (OLIVEIRA, 2010, p. 52).

Com todo esse poder de transformar e humanizar que a narrativa oral exerce, temos o exemplo da mais famosa contadora de histórias: Scherazade, personagem de “As Mil e Uma Noites”, que com a sua sabedoria, coragem, encanto e amor, no ato de narrar transforma o coração cheio de ódio que o sultão Shariar tinha pelas mulheres do seu reino, o encanto e a sabedoria da tecelã das noites, salva a sua vida e de todas as mulheres daquele reino:

A jovem, que se entrega ao sultão Shariar, troca sua vida por uma narrativa, oferecendo a ele um discurso vivo, noite após noite, sempre mantendo a narrativa em suspense, não terminada, a fim de salvar-se e salvar todas as mulheres do reino. Ao conduzir o fio da narrativa tece, oralmente, o texto, tecido de suas infinitas histórias. [...] Era poderosa na arte de urdi narrativas, de tramá-las de enredá-las, de nelas esnovelar o sultão, de seduzi-lo, portando com palavras, de prendê-lo numa teia, tão bem tramada, tão bem ramificada, tão bem aramada que ela mata o sultão de curiosidade e assim, ao saciar esse desejo, que se estende noite após noite, por mil e uma noites, ela o salva, se salva e salva todas as mulheres do reino à medida que graças ao poder de suas exatas palavras, cura o sultão do ódio que ele nutria pela figura feminina (ROMANO, 2009, p. 147).

A exemplo dessa personagem, acreditamos ter em nossa sociedade muitas(os) tecelãs(ões) da noite que estão nas casas, nas comunidades, entre outros lugares tecendo o fio narrativo e encantado os seus ouvintes. Quantas vidas já foram salvas pela literatura? Quantos corações já foram curados por esse poder literário? Acreditamos que muitas vidas, muitos corações, visto que, muitas pessoas são seduzidas por esse encantamento literário que os fazem viver e ver a si, o mundo e a sociedade de outras maneiras.

Na região amazônica, existem muitos narradores de narrativas orais; a floresta é o lugar propulsor desse universo maravilhoso, homens e mulheres em suas caminhadas a esse local relatam aos seus semelhantes, experiências que vivenciam com os seres fantásticos: Como poucos lugares, a selva é um centro propulsor de energias do imaginário. São energias que dispõem perante o homem com suas próprias tensões e fraturas internas. É um universo mítico e mitificante ao mesmo tempo. (PIZARRO, 2012, p. 177). 

São homens e mulheres simples que com a mesma sabedoria que trabalham no roçado, nas lavouras, narram às experiências vividas, geralmente no fim do dia ou à noite. Nesse ato poético aliviam a dureza do trabalho; narrador e ouvinte se embriagam num mundo fantástico que ao mesmo tempo causa medo e emoção, tanto para quem conta, quanto para quem ouve. 

E assim como a tecelã das noites, Scherazade, os narradores e as narradoras da região amazônica também já salvaram vidas de muitas pessoas, pois ao narrarem aliviam a dureza do trabalho diário. 

Das narrativas que ouvimos sempre vamos tirar alguma lição para nossa vida diária, pois toda história tem sempre uma moral, sempre terá algo para nos ensinar, eis a força humanizadora das narrativas orais. Além disso, ela possibilita a convivência entre as pessoas, esse contato físico é importante para o ser humano, pois fortalece os laços familiares ou de amizades. 

Ao ouvirmos os contadores de histórias perdermo-nos no tempo, as horas não são contadas é como se o tempo parasse naquele momento e se pudéssemos não parar de ouvir, ficaríamos presos nesse mundo fantástico, “congelaríamos” o tempo só para ficarmos ouvindo os narradores, suas histórias, pois o feitiço deles impregna a nossa alma e é nesse momento que nos revigoramos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não estamos querendo dizer, contudo, que a literatura oral é um manual de boas maneiras que o homem deve seguir; o que estamos enfatizando é que ela também humaniza, edifica o ser humano, assim como as outras artes; cada história narrada, cada causo, o ouvinte aproveitará o que há de melhor para si e para sua formação sociocultural. 

A arte literária trabalha com outros conceitos éticos que estão fora dos padrões impostos pela sociedade, por isso humaniza, porque tira o homem do lugar comum, e o faz viver e ver o mundo de outras maneiras. 

A sociedade deve valorizar mais essa arte da oralidade, aprendendo com os mais velhos sobre a cultura do seu povo, da sua comunidade, porque isso é fundamental para a construção da identidade cultural. O ato de se reunir para ouvir e contar histórias são importantes, pois exerce uma função ética no grupo; através dele são reforçados os valores que a sociedade deve seguir. Desde a Antiguidade até os dias atuais essa prática foi/é importante para a sociedade. 

REFERÊNCIAS 
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças dos velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São Paulo, v. 24, n. 9, 1972, p. 80-809.

HAVELOCK, Eric. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1996. 

OLIVEIRA, Maria Alexandre de. A literatura para crianças jovens no Brasil de ontem e de hoje: caminhos de ensino. São Paulo: Paulinas, 2008.

PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio: o imaginário e modernização. Tradução de Romulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.ROMANO, Patrícia A. B. Sobre contar e tecer: onde estão os contadores de histórias? Laterna: Revista do Núcleo de Estudos da Linguagem Araguaia – Tocantins, v.3, n. 3 p. 143-152, Marabá: FAEL/UFPA, 2009.

Comentários

  1. Parabéns pela pesquisa.
    Seu trabalho aborda a região Amazônica, mas sabendo que se trata de uma grande extensão territorial, você inseriu ou inserirá alguma pesquisa de campo, no sentido de estabelecer um recorte à sua dissertação?

    Tatiana Cavalcante Fabem

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  2. Obrigada Tatiana!
    Sim, inseri uma pesquisa de campo. A minha pesquisa está concentra em uma comunidade rural da cidade de São Miguel do Guamá-PA, comunidade Ramal dos Guedes, é o lugar que eu nasci e me criei. É uma comunidade formada pela minha família. Quando criança ouvia muitas histórias que meu pai e as pessoas mais velhas contavam, histórias dos encantados que vagavam por lá. Depois de um tempo percebi que essas histórias já não eram ou não são mais compartilhadas como antigamente, por isso, e pela importância que essas histórias têm para nossa cultura e para literatura oral, resolvi fazer a pesquisa nessa comunidade para que as histórias não se percam.


    Kátia Regina Lima Guedes

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  3. Sua pesquisa é um encanto, Kátia! Parabéns e sucesso! Gostaria de saber se é um dos seus objetivos manter a oralidade das histórias dessa comunidade ou vislumbra a possibilidade de deixar um registro escrito das mesmas? Além disso, diante de sua compreensão sobre oralidade e literatura escrita, é possível afirmar que a magia dessas histórias especificamente é exclusivamente quando passadas na forma oral ou há o encantamento se houver a leitura das mesmas?

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  4. Muito obrigada Lais! Meu objetivo é deixar um registro escrito das histórias, e além disso após a conclusão desta etapa, pretendo reunir a comunidade apresentar e falar da importância dessas história para a cultura local, pois os mais jovens já não se interessam muito por elas.
    As histórias orais quando transcritas perdem alguns aspectos performáticos que são transmitidos pelos narradores, porém o encantamento que elas transmitem são preservados, Bia Bedran (2012) afirma que sempre haverá encantamento quando alguém conta, canta ou ler uma história, seja ela letrada ou iletrada.

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  5. Parabéns pela sua pesquisa, você diz que não percebe como antes essas historias na sua comunidade, isso se dá pela falta de interesse dos mais jovens ou também consegues visualizar questões para além da mais perceptível para mim como leitora.

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  6. Obrigada Priscila! A falta de interesse dos mais jovens em não ouvir mais as narrativas como antigamente é ocasionada pela tecnologia que chegou na comunidade, pois antigamente por não ter energia elétrica as pessoas se reuniam todos os dias no fim da tarde para conversar e narrar as histórias de encantaria, das experiências que segundo eles, tinham com os encantados. Outro fator importante relatado pelos mais velhos é que com o desmatamento da floresta alguns encantados que costumavam vagar na comunidade foram embora, o único ser que segundo eles ainda vaga na comunidade é a Matinta Perera. Por isso, na atualidade são poucas pessoas que tiveram experiências com os encantados, a maioria das histórias colidas foram com os mais velhos.



    Kátia Regina Lima Guedes

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