ENTRE A ARTE E A CULTURA POPULAR AMAZÔNICAS: UM ESTUDO SOBRE CINZAS DO NORTE, DE MILTON HATOUM
O presente trabalho faz, à luz dos estudos sobre arte de Nestor Garcia Canclini e Pierre Bourdieu, uma reflexão sobre os critérios de validação estética de obras artísticas de grupos majoritários e minoritários, buscando observar que mecanismos de poder operam nos processos hierarquizantes de tais produções. Mais especificamente o objeto de análise será a obra Cinzas do Norte (2010), de Milton Hatoum, em que há a presença de artistas reconhecidos no circuito artístico instituído, assim como criadores minoritários que não têm suas obras reconhecidas dentro de tal circuito.
A primeira pergunta que norteia este trabalho é: há uma neutralidade na validação estética de obras de arte? Outra pergunta é: os critérios que dividem hierarquicamente a chamada grande arte e a cultura popular são apenas estéticos? Ou há implícitos nesses critérios julgamentos de valor baseados em critérios de poder?
Para responder às perguntas acima, tomemos como perspectiva dois conceitos importantes para este estudo: o de arte e o de patrimônio, este último ligado à cultura popular, entendida como cultura dos grupos minoritários.
Uma observação importante de Canclini é que a valorização patrimonial funciona como estratégia política para a construção e manutenção imaginária da nação, enquanto simulação da unidade cultural, com a finalidade de se ocultar as diferenças internas presentes nas sociedades (CANCLINI, 2012, p. 71). Embora a arte não escape da captura identitária nacional, a mesma, pelo critério da leitura estética, tem mais possibilidade de ser fruída para além da nacionalidade, reinvidicando para si um valor estético excepcional universal; já a produção artística dos grupos minoritários entendida como patrimônio, por estar mais ligada a elementos históricos e identitários, está mais presa ao discurso da nacionalidade, em que o conceito de popular é apropriado pelo Estado e seus intelectuais para simbolizar a unidade nacional.
Uma constatação sobre a valorização diferenciada dos objetos culturais produzidos no meio artístico e no meio minoritário é que aquele se configura como uma produção de grupos privilegiados, envolvendo especialistas, historiadores da arte, críticos, e tendo como foco o valor estético universal da obra, podendo chegar seu valor à marca de milhões de dólares, enquanto que a produção dos grupos minoritários é geralmente objeto de interesse de antropólogos, historiadores e arqueólogos, ou seja, seus critérios se ligam mais aos elementos identitários, como se os mesmos tivessem pouco “valor universal excepcional” (CANCLINI, 2012, p. 72.).
Assim, as obras vinculadas às culturas minoritárias ou populares valem como signo da nação, enquanto a obra de arte valeria de forma universal como obras cujo valor reside em si. Nesse sentido arte possui uma função hierarquizante e diferenciador de classe. Quem mostra essa dupla função é o sociólogo Pierre Bourdieu, “Compreende-se, portanto, que a estética limita-se a ser, salvo exceção, uma dimensão da ética (ou, melhor ainda, do ethos) de classe” (Bourdieu, p. 82, 2007).
Quando falamos em saber artístico, fazemos logo uma relação com o campo formal de produção artística, com artistas, marchands, críticos de arte, historiadores da arte, colecionadores, curadores, dentre outros. Fora desse campo, ou em sua margem, estão os saberes estéticos produzidos pelos grupos minoritários, aos quais muitas vezes se nega o título de arte. Com relação a essa questão, temos as culturas minoritárias entendidas como populares muitas vezes vistas apenas como matéria primária para uma exploração mais elaborada por parte dos artistas. Desse modo, se por um lado o campo majoritário da arte começa a revelar um certo interesse pela cultura popular, por outro, não lhe outorga o reconhecimento de produção artística própria, a não ser com o adjetivo “popular”, que apesar de incluir, implicitamente também rebaixa em termos valorativos. Tal hierarquização é percebida no romance Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, ambientado na Amazônia. Na referida obra temos exemplos de como a cultura dos grupos minoritários é apropriada,
Jobel pintava as estatuetas com figuras geométricas tortas... figuras vermelhas, amarelas, azuis. O padre Tadeu gostava dele, dava tinta e pincel pra ele trabalhar. Objetos lindos, que nem peças marajoaras. Arana comprava tudo por uma mixaria e ia revender aos turistas. [...] Deve ter uma coleção dessas estatuetas na casa dele. O sacana começou a copiar essas mulheres, só que elas foram crescendo, os animais que pariam viraram monstros... e o Arana virou artista. (HATOUM, 2010, p. 76-77).
Temos aí dois personagens, um que está na margem da sociedade, o louco pobre, e outro que inicialmente vai adquiri-las por preços irrisórios para vendê-las a preços altos. Interessante que o narrador compara as esculturas de Pai Jobel a peças marajoaras e não por acaso afirma que Arana as vende como souvenirs amazônicos para turistas. Assim, as criações de Pai Jobel, pela comparação com a técnica marajoara e pelo preço pelos quais são vendidas se aproximam mais do conceito de patrimônio do que de arte propriamente dita. Arana posteriormente vai se apropriar da técnica criativa daquele para ser reconhecido como artista visual. Não por acaso Hatoum colocou na personagem que se aproveita da arte de Jobel e de outros minoritários amazônicos o nome de Arana, pois Arana foi um dos históricos barões da borracha, marcado pela crueldade no massacre de indígenas. Além disso o sufixo tupi “rana” se relaciona com aquilo que é falso, sendo, Arana, portanto um falso artista.
Mas em Cinzas do Norte temos também uma atitude que rasura essa relação hierarquizante entre produção que circula nas galerias e ateliês dos grupos majotários vista como arte, e a produção dos grupos minoritários vistos como não-arte. Trata-se da relação entre Mundo e aquele que é por ele chamado de Índio velho, Nilo. Diferentemente de Arana que estabelece com pai Jobel uma relação de troca para obtenção do lucro, Raimundo estabelece com Índio velho outra relação,
Na noite da chegada, Mundo me acordou para dizer que havia encontrado um índio velho e doente. Um artista. Acendeu a luz e mostrou uma pintura em casca fina e fibrosa de madeira: cores fortes e o contorno diluído de uma ave agônica. [...] Entramos em vários casebres cobertos de palha, chão de terra, paredes barreadas amarradas com cipó. Num deles, o mais distante do casarão de Jano, um velho gemia, deitado na rede. “Não levanta mais”, disse sua mulher. Era um casal de índios, os filhos tinham ido morar em Manaus. (...) O doutor Kazuma conhecia a enfermidade do homem, auscultou seu coração, ficou sério. A mulher entendeu. Mundo olhava para o doente com fascinação; cutucou-me e apontou os objetos pendurados na parede. O médico murmurou: “É o seu Nilo, o mais velho da Vila Amazônia”. Mundo falou em comprar os objetos, a índia não quis receber o dinheiro: o patrão era bom, dava comida, roupa, remédio. Meu amigo insistiu e pagou o que ela não sabia ou não queria cobrar. Continuou ali, perto da rede, olhando para o doente e conversando com a mulher. Não voltou para o casarão; de manhãzinha, me acordou com estas palavras: “O velho acaba de morrer”. Sentou no chão, pensativo, e começou a desenhar (HATOUM, 2010, p. 52-55).
Percebamos que a personagem Mundo reconhece a produção de Nilo como arte, apesar de a própria esposa deste não ter a dimensão do valor das criações do marido morimbundo, não aceitando o dinheiro de Mundo, alegando que o pai deste lhes “dava comida, roupa, remédio”. A confirmação de que Mundo vê no falecido “índio velho” um artista vem anos depois, quando o narrador personagem recebe do amigo artista na Alemanha uma obra cujo título ratifica sua visão daquele indígena como artista: O artista deitado na rede. Antes de Mundo, Arana conheceu o trabalho de Nilo, adquirindo muitos de seus trabalhos, mas chamando a estes apenas de “objetos”, e ao seu criador apenas de “um índio de Parintins”. Percebe-se que Mundo, apesar de pertencer à classe rica, vê no trabalho do índio velho não um trabalho apenas ligado aos elementos etnográficos e patrimoniais da identidade amazônica, como seria comum. Sem que tais elementos sejam abandonados, o personagem percebe na produção do ribeirinho uma obra de arte, estabelecendo com a mesma uma relação estética de fruição.
Desse modo, percebemos que não é apenas o critério estético que determina que uma obra seja apenas signo de patrimônio e identidade ou obra de arte. Relações de poder interferem nos julgamentos e classificações que separam as produções desses dois grupos sociais.
O que tentamos apontar neste estudo é que esse não reconhecimento muitas vezes pode se relacionar com os processos hierarquizantes de poder existentes desde a colonização na Amazônia, em que os grupos minoritários são tidos como incapazes de produzir arte, ou quando muito, capazes de criar objetos estéticos de menor valor, chamados artesanato, enquanto que a produções estéticas dos grupos majoritários são tida como aquela arte de valor estético excepcional universal. A comprovação de que a arte, mesmo aquela que supostamente tematizaria a Amazônia seria algo relacionado apenas às elites econômicas e culturais está na passagem do romance relacionada à demolição da casa em que Mundo morava,
Fui atrás da carcaça de Fogo, não a encontrei. Outro esqueleto, muito maior, se destroçava e prometia virar ruínas. O palacete de Jano já estava destelhado, janelas e portas arrancadas. Vi pela última vez a A glorificação das belas-artes na Amazônia no teto da sala: com cortes de formão e marteladas os operários a destruíram. O estuque caiu e se espatifou como uma casca de ovo; no assoalho se espalharam cacos de musas, cavaletes e liras, que os homens varriam, ensacavam e jogavam no jardim cheio de entulho; pedi a um demolidor um pedaço da pintura com o desenho de um pincel. “Pode levar todo esse lixo”, disse ele, tossindo na poeira. Apanhei só o pincel com a assinatura de De Angelis, como lembrança. (HATOUM, 2010, p. 168).
Lavo, que se tornaria advogado, conhece a obra A glorificação das belas-artes na Amazônia, cuja versão original está no teatro Amazonas, buscando, por isso, guardar um pedaço do estuque com a assinatura de De Angelis, que simboliza a aura em torno da belle époque. Já o operário demolidor, que não pertence à essa elite artística e econômica afirma, ““Pode levar todo esse lixo”. Uma leitura superficial interpretaria o operário como ignorante, mas uma leitura mais acurada mostra que o acesso a essa arte somente para uma elite faz parte dos processos de distinção de classe, em que uma pretensa erudição nata seria símbolo de um refinamento espiritual. Trata-se de um jogo ideológico majoritário que afirma não ser comum às camadas pobres nem produzir, nem consumir arte, jogo que o romancista descontrói e denuncia.
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte, Autêntica, 2014.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. A Sociedade sem Relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Edusp, 2012.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo. Companhia das Letras. 2010.
SAMPAIO, Teodoro. O tupi na geografia nacional. 5.ª ed., 359 p., 2 fotografias: do autor e de F. Edelweiss Brasiliana, v. 380 São Paulo/Brasília: Ed. Nacional/Instituto Nacional do Livro, 1987.
Parabéns pela pesquisa! Você detalha algumas formas que uma obra pode vir a ser considerada arte. Em suma, percebemos que há a influência de classes e as relações de poder, como você apontou. Gostaria de saber se você encontrou em suas análises outras perspectivas que os teóricos apontam como caminhos para admirar ou descartar uma obra artística e se houve alguma (dentro da sua pesquisa) que, à princípio, obteve péssima recepção dos críticos e, posteriormente, foi redimida.
ResponderExcluirObrigada, Lais Menezes
ExcluirHá um campo artístico, conforme afirmado no texto, e obras artísticas não deixam de passar por ele. Estas obras podem, inicialmente, ser repelidas por este campo, mas em lugar da expressão “redimidas”, usaria incorporada. Logo, em outros momentos as obras artísticas seriam incorporadas ao referido campo.
Estou trabalhando um romance, Cinzas do Norte, meu foco se detém a personagens, seres ficcionais, mas na narrativa, o personagem Mundo, que teve suas obras inicialmente renegadas, após sua morte, tem suas obras vendidas pela sua mãe. Esse desenlace, de um artista questionado, que, após a morte, começa a ter suas obras reconhecidas, se liga à realidade de muitos artistas.
O personagem Mundo lembra-me o artista Van Gogh, ele também lutou muito pelo seu reconhecimento artístico, mas suas obras só se tornaram conhecidas e valiosas após sua morte, quando era vivo vendeu apenas um quadro.
ResponderExcluirAlém desses aspectos apresentados na sua pesquisa, existem outros para se obter o reconhecimento artístico?
Kátia Regina Lima Guedes
Olá Kátia Regina Guedes,
ResponderExcluirO reconhecimento vem por um sistema. Aquilo que Cândido já afirma como sistema literário, também ocorre no artístico. Há o valor da obra sim, mas sabe-se que o critério não é puramente estético. E "outras formas de reconhecimento" se tornam difíceis quando se tem um sistema, mas "outras formas", conforme explícito em meu texto, não é o foco de minha pesquisa. No entanto, você pode conseguir mais informações a respeito disso no livro As regas da arte: gênese e estrutura do campo literário, de Bourdieu.
Tatiana Cavalcante Fabem