BELA E A PSICANÁLISE: OS ASPECTOS PSICANALÍTICOS IDENTIFICADOS EM BELA NO CONTO A BELA E A FERA, DE MADAME DE VILLENEUVE (1740)

Lais Menezes da Costa Sousa, Programa de Mestrado Acadêmico em Letras (Poslet), discente, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, laismenezes@unifesspa.edu.br (mestranda)
Profa. Dra. Patrícia Aparecida Beraldo Romano, Programa de Mestrado Acadêmico em Letras (Poslet), professora do quadro permanente, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, paromano@unifesspa.edu.br (orientadora)
Prof. Dr. Luís Antônio Contatori Romano, Programa de Mestrado Acadêmico em Letras (Poslet), professor do quadro permanente, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, luisr@unifesspa.edu.br (co-orientador)

A Bela e a Fera tem suas origens a partir de dois contos franceses publicados no século XVIII. A primeira versão é de autoria de Madame de Villeneuve, no ano de 1740, e a segunda foi a versão adaptada de Madame de Beaumont, em 1756. Ao considerar a classificação de um texto como conto de fadas, vale ressaltar que esse pode ser considerado conto popular e que sua análise pode ser efetuada por aspectos vinculados à psicanálise, conforme Darnton (1986) apresenta:

Como pode alguém partir para interpretação de um texto desses? Um dos caminhos passa pela psicanálise. Os analistas examinaram minuciosamente os contos populares, identificando símbolos escondidos, motivos inconscientes e mecanismos psíquicos (DARNTON, 1986, p. 22-23).

No entanto, ainda que os contos originais possam apresentar conteúdo histórico, essas produções, ao se perpetuarem do formato oral para a literatura escrita, podem sofrer alterações e adaptações, a depender do público e da real intenção na reformulação do mesmo, como ressalta Darnton (1986).

Dessa forma, a presente investigação perpassa pelos conceitos psicanalíticos que podem ser identificados na personagem Bela na versão de Madame de Villeneuve, principalmente levando em conta o embasamento teórico de Sigmund Freud.

Esta versão conta a história de um mercador, pai de seis moças e seis rapazes, que perde sua fortuna e passa a viver no campo com a família. Todos trabalhavam para seu sustento, mas apenas a filha mais nova, Bela, era a mais dedicada ao trabalho e amorosa com o pai. 

Na esperança de recuperar seus proventos, o pai parte em uma viagem e, em busca por abrigo, encontra um castelo onde vê e arranca uma rosa do jardim para levar à sua filha, sendo o único presente que conseguiria levar de volta para casa. No entanto, o dono do castelo, uma fera, o sentencia de morte por ter roubado uma das suas rosas. O homem implorou por misericórdia e a Fera concordou que o mercador retornasse para casa na condição de trazer uma de suas filhas para pagar sua sentença ou ele mesmo deveria regressar ao castelo para cumprir sua pena.

Ainda que com desgosto, o pai concorda que Bela retornasse com ele ao castelo e a moça passasse a morar no castelo com a Fera. Apesar da horrenda aparência de seu anfitrião, Bela é bem tratada pela Fera e, em seus sonhos, vê e se apaixona por um homem bonito e gentil, o qual ela chama de Desconhecido. Todas as noites, durante o jantar, a Fera pergunta à Bela se a moça dormiria com ele, mas a jovem sempre nega, ainda que com medo dele a matar (o que nunca acontece).

Com saudades dos seus familiares, Bela pede à Fera para visitá-los e, mesmo hesitando, a Fera permite desde que a moça retorne para o castelo. Durante sua visita, as irmãs invejosas de Bela a convencem a ficar mais tempo do que havia acordado com a Fera e, quando a moça finalmente retorna ao castelo, encontra o seu anfitrião quase morto. A jovem declara seu amor à Fera e, naquela noite, eles dividiram o leito. No dia seguinte, Bela depara-se com o Desconhecido de seus sonhos ao seu lado e recebe a visita de uma Fada e de uma Rainha no castelo.

A Fada contou que o homem transformado em fera é o filho da Rainha o qual foi amaldiçoado por uma Fada Má, a mesma que afastou Bela de sua verdadeira família: um Rei e uma Fada, exilada por ter se apaixonado por um humano e ter falhado com seus deveres. O príncipe e Bela obtêm a benção dos pais e se casam, vivendo felizes no castelo.

Uma das principais diferenças entre e a versão de Madame de Villeneuve e as demais subsequentes são a linguagem e a presença de certos trechos mais direcionados ao público adulto, por tratar da relação entre Bela e Fera como a de um homem insistentemente pedindo que a dama compartilhe o leito com ele, induzindo ao cunho sexual.

No conto A Bela e a Fera podem ser encontrados vestígios dos seguintes conceitos psicanalíticos: o narcisismo e o complexo de Édipo. Em primeiro lugar, é importante entender o que cada conceito designa na personalidade humana para que, posteriormente, seja apontado onde esses traços são encontrados na personagem Bela.

Em Introdução ao narcisismo, Freud (1914) detalha, de forma básica, o conceito de pessoa narcisista:

(...) a conduta em que o indivíduo trata o próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual, isto é, olha-o, toca nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir plena satisfação mediante esses atos (FREUD, 1914, p. 10).

Acerca desse transtorno, Maria das Graças Araújo (2010) introduz sua análise quanto à repulsa que muitos sentem quando tratam do narcisismo e explica: “Desde as suas origens, a Psicanálise é acusada de psicopatologizar a existência humana. Entre os múltiplos fenômenos que compõem essa existência, talvez nenhum outro tenha adquirido um caráter tão negativo, tão patológico e indesejável quanto o narcisismo” (p. 79).

Os preceitos narcisistas têm suas origens no mito de Narciso, cujo encantamento pela aparência física, sem saber que se trata de sua imagem refletida na água, o leva a sucumbir. Embora a personagem Bela não se afogue diante de seu próprio reflexo, ela apresenta um apreço por si mesma em destaque, comparando-a ao mito de Narciso.

Para iniciar as indicações conceituais sobre o complexo de Édipo, é interessante comentar que a Psicanálise, como área de estudos, possui diversas interligações, o que remete a diversas terminologias e definições, ocasionando um estudo contínuo e perpétuo.

Assim, o narcisismo se interliga ao complexo de Édipo com base na associação feita pelo psicanalista Heinz Kohut:

Esse autor afirma que Édipo não é mais do que uma fase, embora bastante importante, do desenvolvimento do narcisismo e que, a partir de certo ponto da evolução, ambos, Narciso e Édipo, seguem linhas paralelas, com pontos de contato e de influência recíproca (Zimerman, 2008, p. 75)

Ou seja, o relacionamento de Bela com seu pai pode ser identificado como um aspecto do complexo de Édipo. Seu amor pelo pai é tão forte que a moça se oferece para tomar seu lugar na sentença da Fera, mas que pode ser considerado uma relação edipiana normal, conforme Bettelheim (2019):

Nenhum conto de fadas bem conhecido deixa tão óbvio quanto “A Bela e a Fera” que a ligação edipiana de uma criança a um genitor é natural, desejável e tem consequências as mais positivas para todos se, durante o processo de amadurecimento, ela é transferida e transformada ao se desprender do genitor e se concentra no ser amado. Nossas ligações edipianas, longe de serem apenas a fonte de nossas maiores dificuldades emocionais (o que podem ser caso não passem por um desenvolvimento apropriado durante o nosso crescimento), são o solo a partir do qual cresce a felicidade permanente caso vivenciemos a evolução e a resolução corretas desses sentimentos (BETTELHEIM, 2019, p. 418-419).

Dessa forma, conclui-se que a etapa do complexo de édipo de Bela é fundamental para que a moça tenha sua personalidade evoluída ao estágio de, no final, canalizar seu amor pelo pai ao seu futuro marido, o príncipe.

Como ponto de partida para a indicação de possíveis aspectos narcisistas, pode-se indicar o próprio nome da personagem. Tal indicação de agradável aparência física remete aos primeiros entendimentos do conceito narcisista de um sujeito, o qual aprecia ser reconhecido por sua beleza exterior. 

Ocupada em trabalhar no campo e apenas buscar prazer em atividades solitárias (leitura e estudo sobre música), Bela assume sua própria aparência e isso pode configurar como a auto certeza de que ela é bonita, se arrumando e interagindo com o mundo externo ou não.

O fato de estar solteira não lhe incomoda, mesmo se tratando do tempo em que o casamento com um homem era vislumbrado por moças que buscavam proteção, um teto e uma família, conceituado na época como um sonho realizado. Grande parte dessa decisão advém de o fato da moça querer dedicar sua vida a cuidar do próprio pai e essa atitude reitera o seu amor pelo único homem que a compreendia e a tratava como ela queria. Assim, é possível inferir que ela ainda se encontra no chamado narcisismo primário, conceituado por Freud, como descreve Roudinesco e Plon (1997):

(...) Freud retornou a essa questão da localização do narcisismo primário, que foi então situado como o primeiro estado da vida — anterior, portanto, à constituição do eu —, característico de um período em que o eu e o isso são indiferenciados, e cuja representação concreta poderíamos conceber, por conseguinte, sob a forma da vida intra-uterina (ROUDINESCO E PLON, 1997, p. 531-532).

Ou seja, o ambiente paterno pode indicar a “vida intra-uterina” exposta acima. No entanto, essa condição é modificada quando Bela é forçada a permanecer no castelo da Fera como prisioneira, sofrendo, forçada e involuntariamente, a chamada castração paterna.

Em complemento e para consolidar o apontamento sobre a aceitação de Bela por não ter se casado, apresenta-se o conceito de narcisismo secundário, por Freud, conforme a especificação de Zimerman (2008) a seguir:

(...) alude a uma espécie de refluxo da energia pulsional, a qual, depois de ter investido e ocupado os objetos externos, sofre um desinvestimento libidinal, quase sempre devido a fortes decepções com os objetos externos provedores das necessidades, e retornam ao seu lugar original, o próprio ego (ZIMERMAN, 2008, p. 278).

Ainda que o amor edipiano de Bela para com seu pai fosse constante no início do conto, ao entrar a personagem da Fera que lhe oferece comodidade, a realização de seus desejos e a liberdade dentro do castelo, Bela percebe que, embora um monstro, aquele anfitrião a tratava como seu pai e, por isso, era seguro que a moça destinasse seu amor ao segundo. 

Em conclusão, Bela pode apresentar atitudes que remetem ao narcisismo, porém é bem delicado afirmar que a personagem seja no todo narcisista pelo fato de que ela demonstra outras características em sua personalidade que contradizem o que é descrito nesta investigação, com base nos estudos de Freud sobre o assunto.

Em linhas gerais, há um vasto campo de análise com diversas bibliografias a integrar a investigação proposta e possibilitar maior aprofundamento nas questões psicanalíticas da personagem, assim como as variações e adaptações da mesma no decorrer dos anos.

Referências
ARAÚJO, Maria das Graças. Considerações sobre o narcisismo. Aracaju: Estudos de psicanálise, 2010.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo. Sigmund Freud, Obras completas, Vol. 12 (trad. Sob direção de Paulo Cesar de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 1914/2010.

ROUDINESCO, Elizabeth, PLON, Michael. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

VILLENEUVE, Gabrielle-Suzanne Barbot de. A bela e a fera. Tradução Aída Carla da Cunha. Ilustração de Ronnie Elder da Cunha. 1 ed. Florianópolis, SC: Lilás, 2019.

ZIMERMAN, David. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2008.

Comentários

  1. Os símbolos ocultos existentes nas narrativas podem, em que medida, influenciar o comportamento do leitor, nesse caso da criança?


    Sara Brigida Farias Ferreira

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    1. Acredito que toda simbologia presente nos contos de fadas, em especial neste que abordo em minha análise, possa interagir com o psicológico de cada leitor. Cito Bruno Bettelheim a seguir: "Como obras de arte, os contos de fadas têm muitos aspectos dignos de serem explorados para além do significado e impacto psicológicos a que se dedica este livro. Por exemplo, nossa herança cultural encontra expressão nos contos de fadas, e por meio deles é comunicada à mente infantil." (p. 21)* É possível que as personagens e o enredo do conto podem influenciar a visão da criança para vários aspectos de sua vida. Por isso, é primordial que a criança tenha acesso à essas leituras por meio da mediação de um adulto e que este responsável esteja preparado para receber indagações das crianças e, com base nas lições que querem ensinar aos pequenos, possam montar o raciocínio acessível e que supra a curiosidade infantil. Por exemplo, podemos supor que se a criança vê o herói saindo vitorioso de um combate contra um dragão, ela irá se esforçar para vencer suas próprias batalhas com suas desavenças com os colegas de classe. Bettelheim detalha: "Uma vez que detalhar o que esses assuntos implicam acabrunharia e confundiria a criança, o conto de fadas usa símbolos universais que permitem que ela o escolha, selecione, negligencie e interprete de maneiras congruentes ao seu estado de desenvolvimento intelectual e psicológico. Qualquer que seja esse estado de desenvolvimento, o conto sugere como a criança pode transcendê-lo, e o que pode estar envolvido no alcançar o estágio seguinte em seu progresso rumo à integração madura." (p. 187)
      Obrigada pela sua contribuição!

      *BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. 38 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

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  2. Você poderia argumentar um pouco sobre o papel dos contos, como o do referido trabalho, na vida das crianças e na vida adulta? Seria uma identificação e a possibilidade de se recriar através desses personagens marcantes, além da busca para soluções dos conflitos da vida cotidiana?

    Aline Tarcila de Oliveira Lima

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    1. Acredito que o conto de fadas possua dentre suas funções básicas a demonstração imaginária da convivência em sociedade. De acordo com Bruno Bettelheim: "O conteúdo do conto escolhido normalmente não tem nada a ver com a vida exterior do paciente, mas muito a ver com seus problemas interiores, que parecem incompreensíveis e portanto insolúveis. O conto de fadas claramente não se refere ao mundo exterior, embora possa começar de forma bastante realista e ter traços do cotidiano inscritos nele. A natureza irreal desses contos (à qual objetam os racionalistas de mente estreita) é um artifício importante, porque torna evidente que o que interessa aos contos de fadas não é a informação útil sobre o mundo exterior, mas os processos interiores que têm lugar num indivíduo." (p. 36)*. Ou seja, mesmo que nenhum de nós tenha experimentado a metamorfose como a Fera, compreendemos que para melhor convivência social é importante dar valor ao interior da pessoa do que à sua aparência externa.
      Obrigada pela sua contribuição!

      *BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. 38 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

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  3. Parabéns pela maravilhosa pesquisa Lais. Nesse conto vemos que a personagem Bela se apaixona por um ser que apresenta beleza interior e não exterior; a sociedade atual, juntamente com as mídias digitais propagam um padrão de beleza no qual muitas pessoas não se encaixam e provavelmente por esse motivo, algumas delas sofrem com o complexo de inferioridade, você acredita que esse conto pode ajudar essas pessoas a superar esse conflito? Como?



    Kátia Regina Lima Guedes

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    1. Obrigada, Kátia!
      De fato, o conto apresenta esta moral de "não julgue pelas aparências", mas as versões originais de "A Bela e a Fera" do século XVIII enfatizam muito mais a questão da mulher submissa ao casamento arranjado. No entanto, o conto foi adaptado até o ponto que conhecemos a versão atual da Disney (longa-metragem de 2017) no qual, como você pontuou, ressalta a beleza interior da Fera. Acredito que o conto possa contribuir para uma reflexão sobre quem realmente somos, tanto externa quanto internamente, pois a Fera tem aparência monstruosa devido à feiticeira ter lhe transformado no que ele era interiormente, por conta das atitudes egoístas e arrogantes do príncipe. Ou seja, pode induzir aos leitores a rever suas próprias atitudes e como vivem em sociedade. Já Bela demonstra a beleza nas formas externa e interna. O fato de Bela ter visto além da aparência da Fera é o que poderia contribuir para apaziguar os efeitos do complexo de inferioridade que você citou, pois essa atitude nos incita a ver além do que nossos olhos conseguem. Agradeço pela sua contribuição, pois, mesmo que eu tenha desenvolvido minha pesquisa mais no âmbito do narcisismo, pode propiciar novas reflexões sobre a temática e de como utilizar o conto "A Bela e a Fera" em outras análises pelo viés da psicanálise.

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